terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Eu-setembro

Gosto de te ver. De te olhar. De ter com esses olhos teus, soníferos e distantes.
Olhos que me criaram e moldam.
Há tempos que não sinto saudade assim. Parece sofrimento pedante. Mas meu tronco eu sinto oco como o daquele velho ipê devorado por famintos cupins.
O ipê do velho. Parado sempre à porta de sua casa, na rua x, transversal à minha ladeira cotidiana. O ipê do velho nunca se atreveu a entrar.
Nos dias mais devassos de setembro ele escolhia florescer e a rua se coloria em luxúria. Seu tesão era amarelo. Nesses dias, o velho, que velha já não tinha mais, amava.
Por uma semana, sua casa com o muro de cimento vermelho e janelas lacrimejantes adquiria a companhia do mundo inteiro e virava museu. Virava estádio de futebol, cinema. Virava festa. Virava sol.
Quando ipê floresce, é igual a amor que assusta. Dura dois, três dias grande, e depois as flores vão caindo, caindo. Até os galhos esvaziarem e não sobrar nada além de lembrança boa e estranha, pisoteada no chão.
(Dizem que, se você salvar uma flor suicida de ipê antes que ela, louca, se estatele no chão, é sorte por uma vida inteira.)
Terror das casas de avó e armários de orvalho. Pequenos seres loucos, demônios microbiais que odeiam o sólido, o maciço, e têm uma fome inesgotável. Barriga de cupim é mais vazia que tronco meu morto de saudade. Fome de cupim é mais devastadora que despedida inevitável.
Veio então uma família azeda, de seis ou sete dos piores cupins. E tudo começou a desabar. Ou pelo menos o muro vermelho da frente.
Já faziam três setembros que o velho se dera varrendo as floresamores caídas e juntando em uma pilha de luz para as crianças brincarem. Nesse setembro, não varreu. Tímido, o ipê não se permitiu a amanhecer. Ficou só noite, e nada caiu no chão para o velho limpar.
A preocupação veio mas, temendo um diagnóstico, não chamou especialista. Já passara por experiência assim, e não podia arriscar o coração que já perdia intensidade. O velho sofria.
Passaram dois meses, três. O ipê agora lembrava a velha. Casca fina, cor cinzenta, sorriso murcho. Vez ou outra, um sussurro fraco. "Vou ficar bem."
Chegou janeiro, trazendo chuva e sal. Choveu o velho. As janelas tsunaminaram ao ver escorrer vermelho no chão. Blocos de coágulo espalhados pela rua, sob o corpo oco, devorado até a alma, que jazia, pela primeira vez, tentando entrar na casa.
A limpeza desse dia foi mais dolorosa do que o adeus anterior. Primeiro, retiraram o corpo. Depois, arrancaram as raízes e cimentaram o chão. Nada mais iria florescer ali. Jogaram o muro fora, todo, e construíram um maior. Dessa vez o velho nem se atreveu a pintar. Deixou o muro lá, com cor de solidão.
Passaram dois meses, três. O velho agora lembrava o ipê, mas ao contrário. Casca grossa, tronco cheio. O velho se entupiu de desgosto.
Chegou um dia em que o muro tomou conta. As janelas, opacas, fecharam-se pela última vez.
Sem o ipê, o velho não aguentou. Foi suicídio por afogamento em lágrimas.
Tronco de ipê vazio sou eu, agora. Sem entender o por quê de estar só, agora, se você ainda está aqui. Tentei comer duas uvas, três. Nem maduras estavam. O vazio não era fome.
Vazio inunda e sente mais que cheio. Vazio tomou conta de mim, coração de ipê deglutido por cupins.
Eu estou vazia assim, e só seus olhos para fazer dormir essa vontade de desmoronar que habita o ipê-eu.

sábado, 24 de novembro de 2012

Criação Conjunta III (ou Lu)

(por Zélia Bromélia e Beau de Longe)

A pessoa é tão chata
(plana)
que some.

Como a linha do horizonte que se perde no furo da agulha e cega o nó do seu ponto cruz

Vai pelos cantos em silêncio
não se faz de mais
nem de menos.
Se faz só de um sorriso aqui,
um comentário ali...
Tudo com pouco sal.

Sem pimenta.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Sopro

É uma pena
que se soltou
e caiu.

Da asa batendo contra o vento norte
no céu rosado
d'um dia sem cor.

Escorreu pelos ares
leve como uma pluma.
(Ou seria então
leve como uma pena?)

Sem ritmo
no seu tempo
a
pena
se
foi

domingo, 3 de junho de 2012

Criação Conjunta (II)

Uma bolha na corcunda do dedinho torto
Um roxo na curva do cotovelo seco
Um cisco na menina do olho esquerdo
Uma nesga na periferia do lobo direito
Um samba na quina de um bueiro ermo

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Mundo Perecível

"Você demorou um bocado."
"Demorei."
"Onde esteve?
Não, não responda. Não quero saber."
"Então não digo, mas não há motivos para se preocupar."
"Bom."
"Aconteceu algo?"
"Além da sua ausência, nada que eu tenha notado."
"Como?
Ah.
Pare com exageros. Sei bem como aproveita quando sumo."
"Cale a boca. Você não sabe de nada."
"Sei sim."
"Eu sofro."
"Sofre porque gosta de sofrer."
"Mais uma vez, cale a boca."
"Eu entendo sua cabeça melhor que você."
"E, ainda assim, não sabe me agradar."
"É que você muda muito."
"Você também. Já não te conheço mais."
"Pare com todo esse drama, pelo amor de Deus.
Tenho mais o que fazer."
"Vá, então. Suma de novo."
"Olha que eu vou."
"Vá."
"E não volto."
"Volta sim."
"Não tenha tanta certeza, meu bem."
"É que me ama demais."
"Quem?"
"Minha mãe!
Como quem?
Você, claro."
"Dessa vez não volto, juro. Encontrei pr'onde ir."
"Não há lugar melhor que aqui."
"Há, sim."
"Sua cabeça? Poupe-me."
"Então é isso.
Começo a me abrir e você se vira para ir embora."
"Não aguento mais baboseira poética."
"Baboseira poética é minha alma.
Sabe muito bem como sou todo feito disso."
"Fique com ela para si.
Não me interessa."
"Prefere a vida de um casal mudo?"
"Mudo não.
Eu canto."
"Mas não se abre."
"Não."
"Pois cansei-me disso."
"Injusto, você! Sabe o quanto é difícil para mim."
"Para mim não é."
"Então fale."
"Então escute:
Eu me vou."
"Estou escutando! Porque se vira?"
"Você muda muito."
"Não controlo isso."
"Nem eu."
"Apenas conviva.
Veja-me como uma pessoa nova."
"E se acontecer d'eu preferir a antiga?"
"Não compare o incomparável."
"Pare de mudar de assunto.
Ainda quero saber o que aconteceu em minha ausência."
"Já falei que nada.
Sem você aqui, tenho que ficar comigo."
"Você não se aguenta."
"Eu não me aguento."
"Venha cá.
Aguento esse pedaço por você."
"E esse?"
"E esse."
"É muita coisa pra mim.
Eu finjo que aguento, mas só para manter a pose."
"Mantê-la até pra mim?!
Não precisa!"
"Precisa."
"Porque?"
"Não sei se vai se oferecer amanhã."
"Para que?"
"Catar meus cacos.
Me amar.
Não sou só eu que mudo.
É tudo.
O som do vento.
O sabor da maçã.
Como vou saber me portar nesse mundo perecível?"
"Não saberá.
Não sei se poderá confiar em mim sempre."
"Como você não confia em mim."
"Mantenho um pé atrás para não cair."
"Já eu, me entrego.
Acabo vivendo mais que você, acredito."
"Eu viajo."
"Eu também."
"Na cabeça? Pare com isso."
"Foi você quem começou."
"Eu me entendo."
"Não quero entender. Pare com essa sua psicologia barata."
"Você vai se afogar em incoerência."
"Salve-me.
Fique."
"Para afogar-me em você?
Não."
"Não.
Juro."
"Jura?"
"É só me trancar.
Me dar limites.
A liberdade é sufocante."
"É uma saída."
"Sei que não vive sem mim.
Mesmo se viaja."
"Não vivo."
"Então me aguente."
"Aguento.
Se você me aguentar."

domingo, 20 de maio de 2012

Paixão Gourmet


Eu te quero
Te devoro
Tenho fome
Te engulo
Me degluta
Saboreie
Salpicão soturno
Sinto seu aroma
Sinta o meu
Ao ponto
Agora te quero flambado
Dê-me a pimenta do reino
Picado
Fatiado
Quero te degustar por inteiro
Ao dente
Ardente
Satisfaça-me com toda a sua
Festa de novos sabores

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Carta para um amigo da mãe

.
.
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(Perdoe minha hesitação, preciso encontrar o modo perfeito de início).

Amigo,
Sei que não está aqui, mas sinto sua presença a todo momento. Vejo seu apartamento branco pela janela, inabitado, e pergunto-me: o que faz agora?
Sei o que fazia antes. Tenho fotos em meu quarto, de quando você ainda pintava. Será que ainda pinta? Suas grandes telas coloridas e apaixonadas, cheias de tintas que se abriam em janelas para a mente. Buracos sem fundo e sem borda, no tamanho exato para os olhos curiosos que procuram sem achar.
(Encontrei suas fotos enquanto limpava os arquivos da mãe. Encontrei também seus quadros em um catálogo. Estão agora jogados na minha frente. Quando puder aparecer, irei mostrá-los).
Qual era sua sensação ao pintar? Ao se enfurnar em um quarto, acompanhado apenas da criação? Às vezes me pego assim, querendo ficar só comigo e com a poesia - e aí está você, sentado na janela. Talvez apenas me castigue pelas várias vezes que parei para observar-lhe, sugando um pouco da sua intimidade.
As coisas vão bem por aqui. (Não sei se agora devo mentir por casualidade ou jorrar-lhe toda a verdade por desespero).
As coisas não vão tão bem por aqui. Ando questionando mais do que o prescrito pelo doutor. Dicionários e enciclopédias não me fazem mais sentido - por mais que eu coloque os óculos fundo de garrafa com armações negras e grossas. Acabo ficando mais cega. Logo eu, que me orgulhava de minha visão 20x20.
Brindar de taças que se quebram ao fundo - ouve?
(Perceba que agora mudei de assunto. De vez em quando começo com isso de falar de mim mas, se paro para escutar, embrulha o estômago. Ouça as taças).
Conte-me mais das festas. Quero os detalhes de sua vida onde está. É de grande importância para mim e para a mãe. Ela não diz, mas você faz falta.
Falta é um buraco (como aqueles dos seus quadros) que se abre na alma e toma controle dos mais fracos. Que bom que a mãe é forte. Essa força toda que é só dela. Sei que te ajudou muito. Ajuda-me também!
Escrevo por saudades e por desamparo.
Explica-me: é possível sentir saudades do desconhecido? Você sente minha falta? É possível domar o desamparo da falta? Da insegurança? Do ser?
(Não sei se ficará óbvio, por isso digo: larguei a carta ao relento sem querer e, quando voltei, parecia que todas as letras tinham fugido. Por isso mudei de estilo: para prendê-las).
Uma dúvida corriqueira: às vezes, não me contenho em mim mesma. Sou capaz de explodir. Não sei se já passou por isso. Se sim, me dê dicas. A necessidade é infinita. (Sei que isso passa, mas até o passar, passa tempo demais).
Eu, que nunca me abracei, nunca contive uma explosão própria. Nunca na vida. Será isso dependência ou medo?
Paremos de falar de mim.
Aprendi com a mãe que é falta de educação falar só da gente. Falemos de você.
Ouvi histórias de quando ficou doente. Eventos que frequentava mesmo sem estar em condições, piadas que fazia sobre sua condição. Era fácil assim?
Não, que grosseria a minha, perguntar algo assim. Mas é que é tão incrível a forma como você lidou bem com esse pedaço de vida. Acho que a saboreou como uma fatia de bolo. Encheu a boca e comeu tudo enquanto pode, antes que fugisse de dentro do seu prato.
(Vou começar a caminhar para a conclusão. Enrolei até agora porque estou tão sozinha e desamparada que nossa conversa está sendo meu remédio).
Responda logo, mas não precisa ter pressa. A vida é longa demais para esperas.
Queira-me bem, como te quero.
Deseje-me sorte.
Saudades sem fim.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Clareira

Decidi dar um ultimo pulo na cachoeira antes de sair.
A água, dessa vez, me jorrava quente. Queimava-me em bordas pretas e estragava o banho-maria. Antes era assim?
Quando pequena, sempre passava por ali. Mesmo grande. Estava acostumada a pular de cabeça naquele poço sem fundo, redondo como ele só, capaz de engolir a luz do sol e transformá-la em frescor. Costumava entrar no mato com descaso, pés descalços, coração na mão. Se algo desse errado, era só jogar longe.
Caía em clareiras e dava em plantas grandes e formosas, novas e com seus frutos raros. Podia colher do bom e do melhor daquele mato que eu reinava. As coisas nunca tinham parecido tão simples.
Onde pisava, não me importava. Minhas solas já tinham crescido sem os sapatos, e lá ficavam, como cascas de árvore, protegendo tudo que era meu.
Tudo era meu.
Tudo era meu e, mesmo assim, nada. Porque eu, simplesmente, simples mente, não ligava. Era um cheio tão cheio, esse meu tudo de todas as coisas, que eu chamava de banal e optava pelo vazio. Talvez fosse a casca da árvore, mais uma vez, com toda a sua proteção.
Sempre seguia o mesmo caminho, o mesmo que sigo até hoje. Por ele, sei que posso ir segura. Certa vez, atravessei-o de olhos fechados, só para experimentar a sensação do escuro. Nesse ponto, sou que nem hoje: provando de tudo um pouco, sempre pulsando emoção. O "Novo".
Quando pequena, o banho era bom. Era bom no começo, no meio e no fim eu enjoava. Era tanta água, mas tanta água, que eu não aguentava mais. Engasgava, corria pra longe e sumia. Nunca me despedi da cachoeira naqueles tempos. E, se eu sumia, demorava a voltar.
Antes era assim. Não como agora.
Pulei ontem para não sair mais. Não sei o que me deu. Se a pedra que era estranha ou eu que estava diferente. O caminho que usei para chegar foi o mesmo, mas sei que não vou usá-lo para sair. Isso se eu sair daqui.
Minhas cascas de árvore racharam e viraram raízes contra meu gosto.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Fluoxetina

Viver é muito bom. Amar é muito bom. Comer é muito bom. Correr é muito bom.
Sorrir é muito bom. Querer é muito bom. Crescer é muito bom. Beijar é muito bom.
Piscar é muito bom. Viajar é muito bom. Voltar é muito bom. Sentir é muito bom.
Tocar é muito bom. Ouvir é muito bom. Falar é muito bom. Ver é muito bom.
Gritar é muito bom. Dormir é muito bom. Abraçar é muito bom. Ser é muito bom.
Desejar é muito bom. Chorar é muito bom. Respirar é muito bom. Fotografar é muito bom.
Atuar é muito bom. Conversar é muito bom. Lembrar é muito bom. Esquecer é muito bom.
Beber é muito bom. Voar é muito bom. Sumir é muito bom. Cair é muito bom.
Conhecer é muito bom.
Assistir é muito bom.
Escrever é muito bom.
Ajudar é muito bom.
Plantar, colher, construir, fazer, arar, soprar, cozinhar, jogar, debater.
Dividir, multiplicar, ler, ordenhar, acordar, nadar, pular. Defenestrar.
Abrir.
Fechar.
É bom demais.
Chover e ventar. Partir e quebrar.
Revelar.
Passear, confiar, compreender, se aquecer.
Esfriar.
Aplaudir.
Levantar.
Assistir.
Sonhar.
É bom demais.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Como eu não entendo o pesar

O céu fervilha em vermelho.
Acordei agora com uma má notícia e não consigo mais pregar os olhos. Minhas pernas não conseguiam se deitar, como loucas, queriam só correr. Prendi-as. Sentei-me. Parei para digerir.
Está sendo difícil para mim de engolir.
Não aprendi a lidar com perdas. Tenho vontade de levantar-me para gritar:
"Mas isso é injusto! Não pode, não deve ser assim. Tão cedo... tão rápido! E por um erro? Não pode, não pode..."
Dessa vez eu descobri. Não adianta gritar. Algumas coisas vem como ponto final. Elas não somem, apenas viram cicatrizes.
Aos 14 anos, meu pai se tatuou. Uma tatuagem horrorosa. Duas, na realidade, um escorpião e uma boca. Ele pode tirar a tatuagem. Mas ainda haverá uma marca em sua pele, de quando ele era jovem e desimpedido, e se marcou porque quis.
A tatuagem não é um ponto final, mas ilustra a ideia.
Minhas pernas estão um pouco mais relaxadas e o céu enegreceu.
Pontos finais trazem consigo lágrimas e saudades. Desamparo. Que são combatidos com abraços, acalantos e sorrisos, mas, principalmente, com palavras.
Outro ponto fraco meu: além de não lidar com perdas, não sou boa com palavras.
Mas entre meus braços você encontrará todo o carinho do mundo! Pode parecer cliché, mas te dou o meu silêncio como forma remédio. Ele é compreensível e confortável, escuta o debulhar do espaço e oferece atenção.
A má notícia me acordou e destruiu qualquer resquício de possibilidade de ninar.
Só consigo pensar em como confortar os mais feridos. Como? Se nem mesmo consigo confortar a mim, que só tem problemas com as pernas.
Não dou credibilidade às más notícias. Não consigo me convencer de sua existência.
Sei que vou levar tapas na cara.
Prefiro leva-los em minha ignorância ao abraçar no silêncio aqueles que creem e sofrem comigo.

Querido amigo, saiba que sempre estarei ao seu lado. O amor é imortal, assim como o passado. Guarde o que é bom e seja o melhor.

domingo, 8 de abril de 2012

Famintas Estrelas

Estrelas gostam de comer o brilho das lâmpadas.
Degustam das mais variadas intensidades, enchem-se de todo o clarão. Ficam satisfeitas e dormem.
O fulgor tem um gosto peculiar. Mistura-se com a canela e o açafrão fresco, mas nunca deixa de lado seu sabor azul. É de extrema delicadeza. Para apreciá-lo, é preciso alcançar um estado de espírito sublime. Por isso, as estrelas se fartam. Paladar singelo este que, nas horas escuras, clareia. Exato, preciso e meticuloso.
No vazio do universo, no espaço entre as lacunas, as estrelas jaziam. Esfomeadas, precisavam de mais brilho. Redondas, balofas, insaciáveis. E, assim, as estrelas cresciam.
Cresciam pois, inconscientemente, eram alimentadas pelo seu egoísmo. Estrelas desavisadas eram apagadas, desprovidas de seu clarão característico.
Não importava mais a cor ou a temperatura. Vermelhas, azuis, quentes, amarelas, mornas, verdes, frias e congeladas. Extintas.
O Céu começou a minguar. Entrava em um estado de abatimento constante. Sentia-se humilhado, nu. E em todo seu breu, não havia um único clarão para tirá-lo da vala em que se atirava. O Céu precisava de ajuda. O Céu precisava de estrelas.
Foi então que veio o Sol. Não era dos mais gordos, rechonchudo, entretanto, mas gostava de mimar o palato. O Sol era conhecido pela sua inconstância. Mas era porque não reconheciam sua sensibilidade.
Ele entendia a melancolia do Céu, apesar de não conter seu apetite. Mas o Sol brilhava pouco comparado a outras estrelas para acabar com tamanha depressão.
Dentre as estrelas, havia também seres turvos, seres escuros. Havia a Lua.
Lua que não reconhecia a sensibilidade do Sol. Que ignorava a tristeza do Céu. Que zombava da fome das estrelas. A Lua não sabia de nada. Mas tinha um tremendo sorriso, que brilhava mais do que qualquer coisa já vista por olhos impressionáveis.
Desprovido de todas suas defesas falsas, o Sol se apaixonou pela Lua. E por isso, abateu-se mais que o Céu. É que, a Lua não sabia, mas sempre que ela nascia, o Sol tinha que se pôr. Seus horários não batiam e viviam numa série de desencontros que partiam o coração iluminado do Sol.
Entre eles, havia a Terra.
(nesse universo melancólico, acaba que o instante oco vira vácuo e tudo engole. Bem vindo ao espaço misantrópico.)
Pois que a Terra também chorava. Na melhor das hipóteses, era só dor de barriga. Mas o Sol sabia que era mais do que isso, que era a sombra que a encobria. A Terra estava sem lâmpadas, e, assim, encolhia.
Em um dia mais negro que os outros, em um instante mais frívolo que os anteriores, o Sol abriu a boca. E em um jato ininterruptível, vomitou sua luz na Terra.
Parece asqueroso e sujo. Mas a Terra sorriu.
E a Terra brilhava tanto que chegou a cegar os tais olhos impressionáveis. E o brilho foi tanto que a Lua, num súbito ato desesperado, jogou-se na frente do Sol para diminuir a intensidade da luz.
Nesse instante, agora cheio e iluminado, eles se amaram. E as estrelas, comovidas, vomitaram suas luzes por aí, deixando o céu em um êxtase supremo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A voz

Começou como todas as coisas começam. Começou como o mundo começou.
Som. O poder da palavra tomando controle. Mas, além da palavra, o que começou foi a voz.
Apoderou-se de mim por inteiro, essa voz sem dona boca. Não precisava de imagem, não cheguei a sentir seu cheiro, seu sabor. Somente ouvidos. E depois que disparou a falar, vi que era voz bonita, perfumada, voz gostosa que escorre pela língua e enche a boca muda d'água. Foi amor à primeira voz.
Não posso mentir dessa vez. Nem para mim, nem para vocês. Às vezes digo a todos que me apaixonei, só para sair da mesmice. Às vezes, o digo para mim mesma, só para não ter que ficar com todos. E agora, admito: minto. Minto muito sobre isso porque, esse assunto, não gosto de dividir. Mas dessa vez não consigo. Me apaixonei por ti, voz.
Acho que pela primeira vez me apaixonei de verdade. Não estou me contendo dentro desta garrafa. É preciso consumir, escutar, obter. Quero possuir a voz que escuto, que sinto, que como. Só de ouvir me sinto pronta, graças a ela sou mulher feita.
Seu tom rouco e pontual, desleixado e destoante. Se um dia, qualquer dia, eu puder colocar a voz dentro da garrafa, ela quebra. A garrafa. Porque a voz tem uma imensidão tão grande que ocupa todos os espaços. Talvez a voz que me possua, e por isso que não consigo possuí-la.
A voz é buraco negro. Puxa toda a luz do redor para si. Não que precise disso tudo - ela não precisa de nada, é auto-suficiente. Mas acaba se tornando o centro das atenções, mesmo sem querer. É que, sem a voz, nós ficamos quebrados, e acabamos por querê-la inconscientemente, como ansiamos pelo oxigênio segundos antes de alcançar a superfície.
Antes dela, eu achava que funcionava bem. Que era completa e boa na medida do possível. Mas aí ela veio, avalanche, e me mostrou que eu era capaz de muito mais.
Perdoem-me pela tempestade, porém quando me apaixono, fico assim. Precisando de distruibuir por aí, pra mim já tem demais. Chover.
A voz é guarda-chuva, guarda-sol e balde. Não faz parte de mim, mas me criou.
É Criador. A voz é Deus.
Buscando os termos técnicos, essa é a locução que eu procurava. Poderia, até mesmo, tentar imitá-la. Entretanto, seria heresia. A voz tem, sim, suas características de estudo, mas guarda sua maior parte no lado transcendental. Ela sobe aos céus e deve ser entendida pela alma. Ao tentar entende-la pela razão, comete-se o maior crime: onde estava com a cabeça ao racionalizar o divino? É burrice e não adianta de nada, pois você não vai entender. Esqueça. A voz é sentir.
Fecho os olhos. Provo, novamente, os poderes do som. Vem sobre mim a boca mexendo. As pausas. A respiração. Consigo pintá-la lendo. Quero me transformar em voz para ser alguém melhor.
Quando a voz para, sou vazia. E sei que não posso ser cheia o tempo todo. Nem mesmo eu aguentaria a sobrecarga. Mas são nesses momentos em que eu quebro a embalagem que sei que estou a caminho de um lugar melhor

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O que não deve ser dito

A cada instante que passa, mais sei que somos seres feitos de mentiras e sedentos pela verdade.
Não há nada que doa mais que a verdade. A ferida que se abre e jorra o seu sangue rubi por todos os lados, sujando a sala de estar branca e o tapete persa. O nó que se forma na garganta e prende todo o seu ar, deixando a face roxa e desfigurada. A rosa que se despedaça em pétalas pálidas e mortas. A dor é imensa. E, ainda assim, precisamos dela como loucos.
Somos sádicos que se injetam de orgulho e não conseguem viver sem o sofrimento. Mentimos para dentro e para fora, mas quando se tratam de palavras que nos atingem, escolhemos sempre as verdadeiras.
Qual o seu nome, por exemplo? Quero dizer, o seu verdadeiro nome. Daquilo que você deveria ser chamado. Não contamos isso para as pessoas. Dizemos apenas: "Daniel".
Daniel. Que no fundo sabe que não é ninguém, mas continua andando por aí esfregando seu diploma em medicina na cara dos cidadãos do mundo e berrando aos quatro ventos: Eu sei das coisas! Enquanto, na verdade, não sabe de nada. Mas continua engolindo suas próprias mentiras, e ao mesmo tempo exigindo que, para ele, seja entregue a mais pura e letal dose de verdade.
Por um instante, a palavra me fugiu. Verdade. E nesse espaço de tempo em que uma lacuna em branco ocupou o lugar da verdade na minha cabeça, acabou ficando tatuado veneno. Porque heroína, da mais pura, mata.
Voltando ao Daniel. Ou a toda humanidade, como preferir.
Nós sabemos das coisas. É assustador, é inacreditável, e soa como uma mentira. Mas nós sabemos das coisas. Daquelas que nos interessam. Das que nos machucam, principalmente. Com um único olhar, já é possível detectar toda uma vida de traições. E, mesmo sabendo delas, mesmo quando elas nos corroem por dentro, nos magoam e entristecem, queremos que elas sejam ditas. Porque, de alguma forma, achamos que a palavra verdadeira vai deixar tudo mais simples. Teoricamente, a verdade faz bem. Mas não faz. E aí já não são somente nossas entranhas sendo corroídas. É o corpo inteiro. O seu sangue se misturando às lágrimas e escorrendo pelo chão.
Palavras são ferramentas de tortura frias e criadas pelo homem para manipular, seduzir, confundir, deleitar, constranger e matar.
Inventaram que a verdade é a única coisa a ser dita, decidiram que ela só faz bem. Uma novidade: não faz. Água faz bem, mas tente viver só dela. Não dá.
A mentira não é assim, tão inocente. Hoje em dia ela está tão presente e se faz tão necessária que acabou se tornando uma verdade com retoques. Só que não é.
Os conceitos estão errados, as ideias estão trocadas, e nós estamos tão confusos com as teclas dos nossos smartphones que acabamos nos contentando com qualquer coisa desde que escutemos aquilo que queremos escutar.
Queremos escutar tudo aquilo que dói e vem com uma trilha sonora dramática de fundo. Fomos criados assim, e ai de quem preferir o contrário.
Quando falamos a verdade, junto vem a dor. Uma dor gostosa, às vezes, se você gostar desse tipo de coisa, chicotes e algemas. E, de brinde, a cicatriz. Cuspa uma verdade e deixe cozer. Olhe novamente daqui alguns anos e me procure caso não haja cicatrizes.
Dói, também, a mentira. Mas ela pode não só doer. Ela pode tornar as coisas mais fáceis. Ou mais difíceis. Depende do nível em que você goste de jogar o seu jogo. Pode deixar uma ou outra coisa mais bonita. Certamente, mais interessante. Para fora, claro. Pois quando é dirigida para dentro, a mentira promete cair cheia de estragos.
Ao fazer nossos alicerces mentirosos acabamos construindo nossas bases com cimento barato. Sempre chega o momento da questão, em que não nos contentamos com as rachaduras e começamos a querer saber. Porque é assim? Porque está assim? Porque eu fiz assim?Os muros caem, as paredes racham, e os psiquiatras ganham o seu quinhão.
Algumas coisas não precisam ser ditas. E não dizemos. Para nós mesmos, deixamos de dizer muitas coisas. Para o mundo, então, nem se fala.
Assim, volto aos momentos em que, de joelhos, pedimos uma bofetada de verdade, mesmo sabendo o que está por vir. Não nos contentamos com as coisas não ditas. Nós precisamos de saber, de escutar e de sentir. Para, então, provar para nós mesmos que estamos vivos. E que apesar da mentira que somos, tem alguém aí que foi sincero na sua frente.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dói

Filho duma puta.
Canalha.
Sem vergonha.
Idiota.
Babaca.
Falso.
Canalha.











Silêncio?
Calhorda.
Ingrato.
Cachorro.
Desgraçado.
Imbecil.
Repugnante.











Silêncio.
Grotesco.
Vagabundo.
Imprestável.
Palhaço.
Otário.
Pilantra.











Um não. E eu nem tinha começado.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Ballade de l'étrangleur

Eu s ou sozinha
e t


Et, em francês, é "e". De "eu e você".
Est, é. Isso mesmo. É.
Ou.
E ou É.
Sol.
Idão.
Solidão.
Ouvi dizer que vem coalhada de liberdade.
A liberdade solitária não é. Nunca.
Murcha.
E vira doença na cama, que corrói os ossos e deixa raquítico o mais forte dos heróis.
Heróis.
Preciso de um para mim.
Com coragem.
Para me salvar das garras do dragão.
Mas que merda é essa de herói?
Não existe, pequena Lúcia que fica lendo contos de fada. Sinto lhe dizer.
Tudo isso é uma farsa.
Só existem os dragões.
Para os melhores, só existem os dragões.

Eu quero

Tudo de mal pra você. Entende? (Risos). Não, não, não se preocupe. Não quero tudo de mal pra você. Não quero que você... morra, por exemplo. Mas é que também não vou ficar desejando o bem das pessoas assim, a torto e a direito. Tenho que desejar o meu bem antes! (Risos).
Eu quero vomitar no passado. No nosso passado. E na sua cara e na sua comida. (Pausa curta enquanto dá um gole em seu copo de uísque). Eu também quero rasgar todos os papéis que eu gastei nesse meio tempo. E depois de rasga-los, vou manda-los para a reciclagem! Sei bem como hoje em dia tem toda essa moda de ecologia. Ecobag. Te desejo uma. (Abre um sorriso). Desejo uma com a alça rasgada. Vamos ver como você vai fazer compras!
Também quero coisas boas pra mim. Acho que desejar o mal pra você faz bem. Porque desejar o bem não tava ajudando em nada. Pra mim, eu quero é mais uísque. (Pausa longa enquanto serve-se de mais uma dose e três pedras de gelo). Depois do uísque, quero um homem de verdade. Não! Antes do homem, eu quero é música. A música de verdade, igual o homem. E depois, uma dança. Agora, com o homem.
Eu quero os seus pés tortos para que nunca possa dançar. Nunca. Quem dança os males espanta. E males espantados, por enquanto, só quero os meus. (Pausa longa).
Por mim, nem falava mais contigo. Mas nessa vida de casualidades, cheia de encontros e desencontros, temos que conviver sociavelmente. Por isso, vou é gastar toda minha grosseria e sarcasmo quando tiver que me dirigir a você. Como se eu guardasse um gosto amargo na boca, e só o cuspisse em sua direção. (Cospe).
Mas eu não sou assim. Um animal. (Risos). A evolução corre em minhas veias! Venha, eu posso te oferecer um pouco de cicuta... perdão, erro meu! Uísque! (Risos). Mas a vontade de colocar o veneno, essa eu sentiria.
Que mais posso desejar de mal para você? Acho que só você mesmo. (Abre um sorriso). Só de viver dentro dessa sua cabecinha deve ser o inferno.
Minha boa educação me segura. Se não, já teria partido pra cima de você carregada de macumba e assombração. (Dá um gole em seu copo).
É isso. Fique consigo. E meu trabalho está feito. Não quero mais sujar minhas mãos com você.(Levanta-se e vira as costas, com o copo em sua mão).

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Criação

Meus versos não tem métrica
Minhas rimas não o são
Escrevo pelo som do gosto
Pelo sabor do calafrio
Inflando o vazio de minha barriga

As palavras saem d'um pulo
Correm ao vislumbre da guilhotina
Escorrem para o papel
Passam dos dedos à língua
Queimam a pele com seu calor

Abro os olhos
Surpresos
Desacostumados
Despreparados
Virgens

Não contam comigo
Férias não são para exercícios

E de súbito
Num susto
Eles veem
O que sem querer se criou
Nesse meio abiótico em que residem

Fechados ou abertos
Sejam olhos
Sejam janelas
Do interior que se mudou
E agora não se decide
Sobre o branco do papel

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Registro de um dia químico

Nós somos parte de algo maior. E tenho dito.
Porque, quando vemos o mundo assim, dessa forma, sem forma, disforme, aí, sim, eu sei.
Que tem que ser algo maior que coloca esse envoltório em mim. Que eu ainda não sei o que é. Mas algo ao meu redor que me fez arrepiar e sentir o toque dos deuses.
Grito, agora: DEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEUSEEEEEEEEEEEEEEEES!!!
A nuvem! No céu! Veja ali, como corre e muda de forma. E a forma que muda é a mesma e não muda de forma nunca. É como se tudo que se move vai para algo já predestinado, que, convenientemente neste caso, trata-se do que sempre foi.
Tudo que se move vai para algo já predestinado.
Mas eu não me encaixo. Fui indo sem destino em direção à praça 3, dos porquinhos, errei o caminho, sabe como é. Cheguei.
A hora ruim foi quando molhei as calças. E pior, não estavam molhadas!
A vida é bela, meu amigo! Não estamos aqui sem razão! Acredite, pois se digo isso, digo por experiência própria.
Eu vi o quadro se dissolver e voltar ao normal na minha frente. Se isso não provar que a vida é bela, desisto de tudo. Dos meus objetivos. Jogo de lado a toalha.
A arte pulsa vida. É só olhar pra ela pra ver se tudo esta indo conforme o planejado.

domingo, 1 de janeiro de 2012

De virada

E é de novo aquele ano que tomara que seja. Porque o passado já foi demais. Foi tarde.
Espero que leve consigo, Anterior, toda a água suja que eu botei para fora.
Ao que parece, não levou. Seu merda, ingrato! Mandei que levasse! Era só virar o balde na rua, que a água escorre pro bueiro.
Eu não tenho mais espaço pra isso.
Já começou assim. Te peço que não continue.
Pois se continuar, juro que te largo. Sem pestanejar. Sem hesitação. Já conheço o desapego.
Aprendi a lidar com ele. Se não lidasse, não teria chegado até aqui.
Largue esse balde já que eu levo ele pra fora!
Não vou depender de algo assim, como você, para começar a limpeza.
Eu mesma viro a água suja. Eu mesma coloco a água limpa. Pego o pano. E começo pelo chão.
Quero é só sorrisos. Muita paz e sabedoria. Eu preciso.
Porque eu sei o que eu desejo pra mim.
Acima de tudo.
Feliz.