sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O que não deve ser dito

A cada instante que passa, mais sei que somos seres feitos de mentiras e sedentos pela verdade.
Não há nada que doa mais que a verdade. A ferida que se abre e jorra o seu sangue rubi por todos os lados, sujando a sala de estar branca e o tapete persa. O nó que se forma na garganta e prende todo o seu ar, deixando a face roxa e desfigurada. A rosa que se despedaça em pétalas pálidas e mortas. A dor é imensa. E, ainda assim, precisamos dela como loucos.
Somos sádicos que se injetam de orgulho e não conseguem viver sem o sofrimento. Mentimos para dentro e para fora, mas quando se tratam de palavras que nos atingem, escolhemos sempre as verdadeiras.
Qual o seu nome, por exemplo? Quero dizer, o seu verdadeiro nome. Daquilo que você deveria ser chamado. Não contamos isso para as pessoas. Dizemos apenas: "Daniel".
Daniel. Que no fundo sabe que não é ninguém, mas continua andando por aí esfregando seu diploma em medicina na cara dos cidadãos do mundo e berrando aos quatro ventos: Eu sei das coisas! Enquanto, na verdade, não sabe de nada. Mas continua engolindo suas próprias mentiras, e ao mesmo tempo exigindo que, para ele, seja entregue a mais pura e letal dose de verdade.
Por um instante, a palavra me fugiu. Verdade. E nesse espaço de tempo em que uma lacuna em branco ocupou o lugar da verdade na minha cabeça, acabou ficando tatuado veneno. Porque heroína, da mais pura, mata.
Voltando ao Daniel. Ou a toda humanidade, como preferir.
Nós sabemos das coisas. É assustador, é inacreditável, e soa como uma mentira. Mas nós sabemos das coisas. Daquelas que nos interessam. Das que nos machucam, principalmente. Com um único olhar, já é possível detectar toda uma vida de traições. E, mesmo sabendo delas, mesmo quando elas nos corroem por dentro, nos magoam e entristecem, queremos que elas sejam ditas. Porque, de alguma forma, achamos que a palavra verdadeira vai deixar tudo mais simples. Teoricamente, a verdade faz bem. Mas não faz. E aí já não são somente nossas entranhas sendo corroídas. É o corpo inteiro. O seu sangue se misturando às lágrimas e escorrendo pelo chão.
Palavras são ferramentas de tortura frias e criadas pelo homem para manipular, seduzir, confundir, deleitar, constranger e matar.
Inventaram que a verdade é a única coisa a ser dita, decidiram que ela só faz bem. Uma novidade: não faz. Água faz bem, mas tente viver só dela. Não dá.
A mentira não é assim, tão inocente. Hoje em dia ela está tão presente e se faz tão necessária que acabou se tornando uma verdade com retoques. Só que não é.
Os conceitos estão errados, as ideias estão trocadas, e nós estamos tão confusos com as teclas dos nossos smartphones que acabamos nos contentando com qualquer coisa desde que escutemos aquilo que queremos escutar.
Queremos escutar tudo aquilo que dói e vem com uma trilha sonora dramática de fundo. Fomos criados assim, e ai de quem preferir o contrário.
Quando falamos a verdade, junto vem a dor. Uma dor gostosa, às vezes, se você gostar desse tipo de coisa, chicotes e algemas. E, de brinde, a cicatriz. Cuspa uma verdade e deixe cozer. Olhe novamente daqui alguns anos e me procure caso não haja cicatrizes.
Dói, também, a mentira. Mas ela pode não só doer. Ela pode tornar as coisas mais fáceis. Ou mais difíceis. Depende do nível em que você goste de jogar o seu jogo. Pode deixar uma ou outra coisa mais bonita. Certamente, mais interessante. Para fora, claro. Pois quando é dirigida para dentro, a mentira promete cair cheia de estragos.
Ao fazer nossos alicerces mentirosos acabamos construindo nossas bases com cimento barato. Sempre chega o momento da questão, em que não nos contentamos com as rachaduras e começamos a querer saber. Porque é assim? Porque está assim? Porque eu fiz assim?Os muros caem, as paredes racham, e os psiquiatras ganham o seu quinhão.
Algumas coisas não precisam ser ditas. E não dizemos. Para nós mesmos, deixamos de dizer muitas coisas. Para o mundo, então, nem se fala.
Assim, volto aos momentos em que, de joelhos, pedimos uma bofetada de verdade, mesmo sabendo o que está por vir. Não nos contentamos com as coisas não ditas. Nós precisamos de saber, de escutar e de sentir. Para, então, provar para nós mesmos que estamos vivos. E que apesar da mentira que somos, tem alguém aí que foi sincero na sua frente.