quarta-feira, 9 de maio de 2012

Carta para um amigo da mãe

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(Perdoe minha hesitação, preciso encontrar o modo perfeito de início).

Amigo,
Sei que não está aqui, mas sinto sua presença a todo momento. Vejo seu apartamento branco pela janela, inabitado, e pergunto-me: o que faz agora?
Sei o que fazia antes. Tenho fotos em meu quarto, de quando você ainda pintava. Será que ainda pinta? Suas grandes telas coloridas e apaixonadas, cheias de tintas que se abriam em janelas para a mente. Buracos sem fundo e sem borda, no tamanho exato para os olhos curiosos que procuram sem achar.
(Encontrei suas fotos enquanto limpava os arquivos da mãe. Encontrei também seus quadros em um catálogo. Estão agora jogados na minha frente. Quando puder aparecer, irei mostrá-los).
Qual era sua sensação ao pintar? Ao se enfurnar em um quarto, acompanhado apenas da criação? Às vezes me pego assim, querendo ficar só comigo e com a poesia - e aí está você, sentado na janela. Talvez apenas me castigue pelas várias vezes que parei para observar-lhe, sugando um pouco da sua intimidade.
As coisas vão bem por aqui. (Não sei se agora devo mentir por casualidade ou jorrar-lhe toda a verdade por desespero).
As coisas não vão tão bem por aqui. Ando questionando mais do que o prescrito pelo doutor. Dicionários e enciclopédias não me fazem mais sentido - por mais que eu coloque os óculos fundo de garrafa com armações negras e grossas. Acabo ficando mais cega. Logo eu, que me orgulhava de minha visão 20x20.
Brindar de taças que se quebram ao fundo - ouve?
(Perceba que agora mudei de assunto. De vez em quando começo com isso de falar de mim mas, se paro para escutar, embrulha o estômago. Ouça as taças).
Conte-me mais das festas. Quero os detalhes de sua vida onde está. É de grande importância para mim e para a mãe. Ela não diz, mas você faz falta.
Falta é um buraco (como aqueles dos seus quadros) que se abre na alma e toma controle dos mais fracos. Que bom que a mãe é forte. Essa força toda que é só dela. Sei que te ajudou muito. Ajuda-me também!
Escrevo por saudades e por desamparo.
Explica-me: é possível sentir saudades do desconhecido? Você sente minha falta? É possível domar o desamparo da falta? Da insegurança? Do ser?
(Não sei se ficará óbvio, por isso digo: larguei a carta ao relento sem querer e, quando voltei, parecia que todas as letras tinham fugido. Por isso mudei de estilo: para prendê-las).
Uma dúvida corriqueira: às vezes, não me contenho em mim mesma. Sou capaz de explodir. Não sei se já passou por isso. Se sim, me dê dicas. A necessidade é infinita. (Sei que isso passa, mas até o passar, passa tempo demais).
Eu, que nunca me abracei, nunca contive uma explosão própria. Nunca na vida. Será isso dependência ou medo?
Paremos de falar de mim.
Aprendi com a mãe que é falta de educação falar só da gente. Falemos de você.
Ouvi histórias de quando ficou doente. Eventos que frequentava mesmo sem estar em condições, piadas que fazia sobre sua condição. Era fácil assim?
Não, que grosseria a minha, perguntar algo assim. Mas é que é tão incrível a forma como você lidou bem com esse pedaço de vida. Acho que a saboreou como uma fatia de bolo. Encheu a boca e comeu tudo enquanto pode, antes que fugisse de dentro do seu prato.
(Vou começar a caminhar para a conclusão. Enrolei até agora porque estou tão sozinha e desamparada que nossa conversa está sendo meu remédio).
Responda logo, mas não precisa ter pressa. A vida é longa demais para esperas.
Queira-me bem, como te quero.
Deseje-me sorte.
Saudades sem fim.

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