terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Eu-setembro

Gosto de te ver. De te olhar. De ter com esses olhos teus, soníferos e distantes.
Olhos que me criaram e moldam.
Há tempos que não sinto saudade assim. Parece sofrimento pedante. Mas meu tronco eu sinto oco como o daquele velho ipê devorado por famintos cupins.
O ipê do velho. Parado sempre à porta de sua casa, na rua x, transversal à minha ladeira cotidiana. O ipê do velho nunca se atreveu a entrar.
Nos dias mais devassos de setembro ele escolhia florescer e a rua se coloria em luxúria. Seu tesão era amarelo. Nesses dias, o velho, que velha já não tinha mais, amava.
Por uma semana, sua casa com o muro de cimento vermelho e janelas lacrimejantes adquiria a companhia do mundo inteiro e virava museu. Virava estádio de futebol, cinema. Virava festa. Virava sol.
Quando ipê floresce, é igual a amor que assusta. Dura dois, três dias grande, e depois as flores vão caindo, caindo. Até os galhos esvaziarem e não sobrar nada além de lembrança boa e estranha, pisoteada no chão.
(Dizem que, se você salvar uma flor suicida de ipê antes que ela, louca, se estatele no chão, é sorte por uma vida inteira.)
Terror das casas de avó e armários de orvalho. Pequenos seres loucos, demônios microbiais que odeiam o sólido, o maciço, e têm uma fome inesgotável. Barriga de cupim é mais vazia que tronco meu morto de saudade. Fome de cupim é mais devastadora que despedida inevitável.
Veio então uma família azeda, de seis ou sete dos piores cupins. E tudo começou a desabar. Ou pelo menos o muro vermelho da frente.
Já faziam três setembros que o velho se dera varrendo as floresamores caídas e juntando em uma pilha de luz para as crianças brincarem. Nesse setembro, não varreu. Tímido, o ipê não se permitiu a amanhecer. Ficou só noite, e nada caiu no chão para o velho limpar.
A preocupação veio mas, temendo um diagnóstico, não chamou especialista. Já passara por experiência assim, e não podia arriscar o coração que já perdia intensidade. O velho sofria.
Passaram dois meses, três. O ipê agora lembrava a velha. Casca fina, cor cinzenta, sorriso murcho. Vez ou outra, um sussurro fraco. "Vou ficar bem."
Chegou janeiro, trazendo chuva e sal. Choveu o velho. As janelas tsunaminaram ao ver escorrer vermelho no chão. Blocos de coágulo espalhados pela rua, sob o corpo oco, devorado até a alma, que jazia, pela primeira vez, tentando entrar na casa.
A limpeza desse dia foi mais dolorosa do que o adeus anterior. Primeiro, retiraram o corpo. Depois, arrancaram as raízes e cimentaram o chão. Nada mais iria florescer ali. Jogaram o muro fora, todo, e construíram um maior. Dessa vez o velho nem se atreveu a pintar. Deixou o muro lá, com cor de solidão.
Passaram dois meses, três. O velho agora lembrava o ipê, mas ao contrário. Casca grossa, tronco cheio. O velho se entupiu de desgosto.
Chegou um dia em que o muro tomou conta. As janelas, opacas, fecharam-se pela última vez.
Sem o ipê, o velho não aguentou. Foi suicídio por afogamento em lágrimas.
Tronco de ipê vazio sou eu, agora. Sem entender o por quê de estar só, agora, se você ainda está aqui. Tentei comer duas uvas, três. Nem maduras estavam. O vazio não era fome.
Vazio inunda e sente mais que cheio. Vazio tomou conta de mim, coração de ipê deglutido por cupins.
Eu estou vazia assim, e só seus olhos para fazer dormir essa vontade de desmoronar que habita o ipê-eu.